Rebeca sempre se destacou entre as meninas de sua idade, não pelo seu carisma ou pelo dom com cálculos, e sim pelo seu corpo. Ela era maior do que as outras. Ela sempre foi alta, mas o que chamava a atenção das pessoas era o seu manequim. Sim, ela estava muito acima do peso, mas isso não fazia a garota se abater. Mentalizava e repetia em voz alta que não era obrigada a entrar nos padrões de beleza exigidos pela sociedade.
Quando era criança sempre ficava ansiosa pelos Parabéns, não via a hora de partirem o bolo. Comia muitos brigadeiros e todos os docinhos que estavam disponíveis. Era muito rápida na hora que liberavam a mesa dos doces, se orgulhava quando iam contar os brigadeiros e ela sempre estava com mais. Em todas as festas a mãe dela pedia para levar um pedaço de bolo para a casa. Rebeca já se animava, sabia o que ia comer no café da manhã. Ela ficava super decepcionada quando iam brincar de pique esconde, ou pique pega e sempre era a primeira a ser pega. Não conseguia correr tão rápido quanto seus amiguinhos. Detestava essas brincadeiras, preferia ficar sentada na mesa com seus brigadeiros, mas sua mãe a mandava ir brincar o tempo todo.
Na época da escola recebeu o apelido de Rebecão, um trocadilho do seu nome com o Rabecão, aquele carro enorme de funerária. Fez que não ligou quando ouviu pela primeira vez o apelido seguido das risadas, mas quando chegou em casa ficou tão triste que chorou sozinha com o travesseiro. Aquele menino que ela gostava estava no meio da turma que riu da Rebecão. Se obrigou a limpar as lágrimas, sabia que se ficassem com raiva o apelido ia pegar de vez e decidiu que não ia se opor, como uma maneira de fazer com que eles esquecessem. No dia seguinte não disse nada quando a chamaram de Rebecão e posteriormente passou a atender tranquilamente por esse apelido, depois de tanto tempo fazendo que não se importava, ela passou a realmente não se importar.
A escola foi um período difícil para Rebeca, não apenas pelos colegas, mas sofria muito durante as aulas de educação física, odiava fazer esportes e o uniforme do colégio apertava muito as suas coxas largas, incomodava o tempo inteiro. Nunca teve muita habilidade com as bolas, mas sempre era escolhida rapidamente para ser goleira nos times de handball. Não sabia o motivo de ser chamada tão rápido, ela não conseguia ouvir a colega cochichando para colocarem a Rebecão no gol por que sobraria menos espaço para a bola passar. Sentia muitas dores nas pernas e nas costas durante a educação física e detestava ter que voltar para a sala de aula depois da atividade, ela tinha a impressão de que suava mais do que as outras garotas e sentia muito calor dentro da sala fechada. Depois de um tempo passou a se incomodar menos com isso, secava o suor no banheiro antes de voltar para a sala, algumas vezes também trocava de blusa.
Nos jantares em família sempre tinha que aturar as piadinhas horríveis do tio sem graça “menina, que tamanho de prato é esse?” ela ria e dizia “menor que o seu”, ela não se importava, estava com fome e esperou horas por aquela comida, não ia fazer um prato pequeno para satisfazer os outros. E quando não estava satisfeita repetia a comida, e novamente vinham as críticas “vai comer de novo?” e ela somente respondia “sim, não pode?” e não ligava que ficassem olhando. Ela repetia mentalmente que não precisava se encaixar nos padrões estéticos daquela família para ser feliz.
Antes de entrar na faculdade começou a procurar roupas que valorizassem seu corpo, como uma forma de mostrar o que ela tinha de bom. Decidiu que seus seios enormes eram lindos e que deveria usar roupas que os valorizassem. Comprava sutiãs de um tamanho menor, para que eles ficassem bem avantajados. Os decotes eram cada vez maiores e ficava tão feliz quando vestia um que nem reparava se o resto da roupa caia bem. Nada de olhar se a blusa estava apertada demais e nem se ficava um pouco curta enquanto ela se movimentava. Se a roupa tinha decote, ela usava. Várias vezes Rebeca viu pessoas olhando muito para os seus decotes, quando eram homens observando, ela tinha certeza de que eles a desejavam. Quando os olhares vinham das mulheres ela tinha certeza que não passava de inveja, todas querem ter seios fartos, se não fosse por isso não existiriam tantas mulheres com silicone. Pensava que deveria ser muito triste sem uma mulher sem peito, sem poder usar um bom decote, “essa despeitada está com inveja porque não pode usar um decote como eu”. Ela se sentia tão poderosa que poucas vezes percebeu que os olhares que recebia eram de reprovação ou até mesmo assustados. Nunca ouviu os comentários das vendedoras das lojas, que muitas vezes ficavam apreensivas com medo da roupa rasgar.
Zombou várias vezes das amigas que tomavam suplemento na academia e acordavam cedo para correr no parque, dizia que elas estavam querendo virar homem e que nunca trocaria a cama pelo vento gelado no rosto. Ridicularizava os sacrifícios que as amigas faziam para poder entrar nos “padrões da sociedade”.
Desde que começou a sair com homens ela aprendeu que não deveria se apaixonar e nem se envolver muito. Preferia sair antes de levar um fora. Criou aquela situação do “pego, mas não me apego” e assim evitou criar sentimentos e relacionamentos. Achava difícil que alguém fosse realmente gostar dela, afinal, ela não estava nos “padrões da sociedade”. Ela entendia que não estar nos “padrões” não a incomodava em nada, mas afetava a todos que estavam em sua volta. Sua família, seus amigos e todos sempre apontaram seu peso como um defeito, por que com os homens seria diferente? Nunca acreditou que alguém gostaria da menina fora dos padrões, e com isso decidiu que seria feliz assim, sem nunca esperar nada em troca dos homens com quem se relacionasse.
Um dia ela não conseguiu seguir a risca essa regra e se apegou e se apaixonou. Ela acredita que só deixou isso acontecer por que ele se apaixonou antes e ela resolveu continuar para ver se era verdade ou alguma piada. Era verdade e ela se deixou se apaixonar. Só que desde o início foi um relacionamento enrolado e tudo começou com ela querendo testa-lo. E com isso eles terminavam e voltavam e ninguém conseguia saber quando eles estavam juntos ou quando estavam separados. Os problemas vinham de várias maneiras, algumas vezes era a mãe dele que sufocava, ou o irmão dela que implicava, ou ela não se mostrava tão interessada e ele se irritava, ou ele não se mostrava tão interessado e ela se irritava. Por fim eles decidiram que era melhor não ficarem verdadeiramente juntos e não rotular a relação. Se encontravam quando queriam e davam satisfações quando sentiam necessidade.
Depois de muita insistência da mãe, Rebeca foi a uma consulta médica e ficou assustada com a quantidade de exames que ele pediu. Depois de 8 tubos de sangue, ela descobriu que estava com o colesterol e o triglicerídios em níveis altíssimos e estava quase chegando na diabetes. O discurso do médico foi tão apavorante que ela nem se lembra como chegou em casa aquele dia, de tanta preocupação que sentiu. Guardava o telefone da nutricionista que o médico recomendou e decidiu que iria procura-la o mais rápido possível.
A consulta foi um pouco menos assustadora que a do médico. Descobriu que se não mudasse imediatamente a sua alimentação, a saúde continuaria em risco e poderia sofrer até mesmo um infarto. Tinha que perder peso imediatamente para estar saudável. Lembrou da irmã do seu pai que infartou quando era nova e sofre as sequelas anos depois, e com isso decidiu que ia mudar imediatamente.
Fez a matricula na academia perto da casa dela e não acreditou quando foi comprar roupas para se exercitar. Ela se sentiu ridícula usando todos aqueles aparelhos de musculação, mas era melhor ser ridícula com saúde do que legal e debilitada. Sentia que todos estavam olhando para ela e por isso nem olha para os lados e muito menos para o espelho. Depois de duas semanas decidiu olhar em volta e percebeu que ninguém a olhava, todos apenas se concentravam no próprio exercício e no máximo conversavam com um amigo. Ficou mais a vontade e decidiu levar a sério também.
Sofreu muito com os primeiros dias na dieta, a mãe dela ficou tão preocupada que fez a casa todo entrar no regime. Acabou com as frituras, os refrigerantes, os bolos de chocolate no café da manhã, as coxinhas no lanche da tarde. A família inteira apoiou Rebeca nesse novo estilo vida, ficaram todos muito preocupados, mas não deixaram que ela percebesse.
Enquanto esperava os três meses solicitados pelo médico para repetir o exame, Rebeca já não sentia mais tanta falta da pizza com fanta uva no lanche da faculdade e nem tinha mais tanta raiva de frequentar a academia.
Não tinha mais nenhuma roupa que servia, ela somente percebeu isso quando precisou usar um cinto na calça e quando conseguiu usar, sem nenhum esforço, aquele sutiã de número menor. Tentou resistir na insistência da irmã em ir ao shopping comprar roupas novas, não era o seu passatempo preferido. Levou um susto quando viu que diminuiu 4 números da calça jeans e se assustou mais ainda quando se olhou no espelho e se achou linda com uma calça jeans. A vendedora insistiu para que ela levasse também uma blusa nova, mas ela não via nenhuma que a agradasse. Resolveu experimentar uma para não ouvir a irmã no ouvido e quando teve outra surpresa. A blusa não tinha nenhum decote profundo, não era colada e estava ótima. Ela nem se lembrava de quando tinha sido a última vez que tinha se achado bonita sem parte dos seios a mostra.
Quando chegou em casa Rebeca passou por um pequeno conflito interno. Ela ficou feliz com o novo corpo, mas estar feliz com ele a faria entrar nos “padrões exigidos pela sociedade”? Ela nunca quis ser uma garota dentro dos padrões, sempre teve certeza de que ninguém poderia ditar qual roupa ela tinha que usar, o quanto ela tinha que comer ou como deveria ser o corpo dela. Foi então que ela se perguntou se ela era realmente feliz daquele jeito. E pela primeira vez ela resolveu pensar sensatamente e chegou a conclusão que gostaria de poder ter sido uma boa participante no pique-pega, não queria ter sido sempre a primeira a sair. Se pudesse escolher, ela com certeza não gostaria de ser conhecida como Rebecão e finalmente admitiu que odiava esse apelido, e que mesmo ela fazendo que não ligava, os amigos da escola até hoje a chamavam assim. Gostaria também de ter aproveitado mais as aulas de educação física, agora ela até curtia fazer exercícios na academia. Também preferia não ter ouvido piadinhas nos jantares em família.
Passou minutos observando as peças de roupa que lotavam o seu armário e se sentiu muito mal por ter se obrigado a pensar que precisaria chamar a atenção por um decote. E a história de evitar ter sentimentos? Que grande besteira, no fundo ela sempre quis cair de amores no primeiro beijo, mas a imagem que ela fez dela própria foi mais forte do que esse desejo e ela sempre se bloqueou. E isso a fez continuar com esse relacionamento falido com o ex. Ela finalmente percebeu que nunca deixou o assunto morrer por medo de mais nenhum homem ser capaz de se apaixonar por ela. Preferiu enganar o ex e se enganar do que tentar enfrentar a realidade.
Ela pensou que poderia muito bem ter sido realmente feliz, mas ela não estava sendo, somente se enganou por 25 anos. Nunca foi feliz sendo comparada com um carro de funerária. Ela sabia que o apelido não era culpa dela, e sim da falta de respeito dos meninos da escola, e isso ela não tinha como mudar. A menina que era muito magra recebeu o apelido de Olivia Palito, ela também não gostava disso. Talvez um dia, as pessoas consigam aceitar as diferenças.
E então veio a dúvida: o que seria estar nos padrões então? É conseguir correr sem passar mal ou ter o corpo das modelos da Victoria Secrets? É não correr risco de infarto ou é não exibir celulite? É não exagerar nas comidas gordurosas ou é só comer clara de ovo?
E finalmente chegou a conclusão de que, não, ela não estava nos padrões exigidos pela sociedade. Não tinha barriga negativa, estava longe disso. Não postava fotos na academia e nem do lanche saudável. Ela somente precisou emagrecer, gostou do resultado e não tinha que dar satisfações a ninguém sobre o motivo que a fez tomar esta decisão. Mesmo não chamando mais atenção pelo seu peso, Rebeca ainda tem certeza de que ninguém pode ditar o que ela deve vestir, comer ou como deve ser seu corpo. Não se trata sobre o que os outros dizem, e sim sobre o ela pensa. Ela sempre tentou agir assim, ela sempre pensou que agia assim, mas somente agora ela consegue se avaliar e ser feliz sem mascarar nenhuma situação.